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O meu avô e Uri Caine

Vinagre e azeite
O meu avô era lavrador. Não era pessoa de grandes falas, embora nos seus últimos anos gostasse de contar histórias do tempo que tinha passado na tropa, em Cabo Verde, durante a Grande Guerra.
Nalgumas das mais antigas recordações que tenho dele, eu teria talvez seis anos, levava-me para a «fazenda». Era uma aventura para mim, menino da cidade, vacilando entre a chatice de ter de me levantar às seis da manhã e um dia inteiro com o meu avô. Naqueles dias, a minha avó já tinha pronto para mim o café, uma caneca enorme, e pão com manteiga, enquanto ele albardava o burro. Conforme a fazenda e o que tinha que fazer, o burro ia ou não carregado e eu podia talvez ir montado nele, e com sorte até talvez tivesse que atrelar a carroça!

A fazenda de que eu mais gostava dava pelo nome de Antas e ficava num vale ao pé de um ribeiro. Ficávamos lá todo o dia e por isso o meu avô levava merenda. Ele regava os feijões, arrancava batatas, cortava canas ou refazia os espantalhos, enquanto eu vigiava o burro para não ir para as canas de que era um guloso, e procurava os alfaiates na água, ou ficava por ali a brincar com paus e cascas de árvores ou ajudava-o em qualquer coisa. O meu avô não era uma pessoa muito afectiva; estava sempre ocupado e não parecia ligar muito aos netos; mas aqueles momentos em que estávamos sós os dois, lá longe, um dia inteiro, no silêncio das Antas, eram especiais. Não falava muito, mas foi ele que me disse que aquele ribeiro ia ter ao Rio Baça que se juntava com o Rio Alcoa, e no sítio onde se encontravam tinha-se passado a chamar Alcobaça; e um dia fui ver lá ao pé da ponte e era assim.

O jantar não variava muito. No campo não era como na cidade: almoçava-se qualquer coisa a meio da manhã, um dia pão com chouriço e outro marmelada, e jantava-se ao princípio da tarde, e às vezes, raramente, o meu avô fazia uma sesta. O que eu preferia para o jantar eram carapaus secos da Nazaré com batatas que a minha avó já tinha cozido, e que ele aquecia numa fogueira improvisada que eu ajudava a fazer. Depois ele ria-se com ar matreiro enquanto afiava um pau verde que espetava pelos olhos dos carapaus todos em linha, que depois passava pela fogueira. O fogo queimava a pele espinhuda dos carapaus e fazia-lhes pingar a gordura. Ele não dizia nada e passava-me um carapau ou um pouco de pão, e sorria-se. Depois pelávamos as batatas e desfiávamos os carapaus para o prato de alumínio, e enfim temperávamos com azeite e vinagre e talvez um dente de alho. O galheteiro era uma garrafa meia de vinagre de vinho tinto em baixo e outro tanto de azeite dourado em cima que ele manuseava com perícia para que os líquidos não se misturassem. Um dia perguntei-lhe porque é que o azeite e o vinagre não se misturavam e ele respondeu-me que era assim, «porque o azeite e o vinagre não se misturam».

Eu gostava daquele ritual; estabelecia-se uma espécie de cumplicidade entre nós que não havia em casa. Ele pedia-me para apanhar paus para a fogueira e às vezes deixava-me até pegar no canivete e afiar espetos para os carapaus ou passava-me a garrafa-galheteiro para temperar as batatas com o azeite e o vinagre. Ainda hoje sinto o cheiro a vinho do vinagre e da gordura dos carapaus na cinza. Ainda hoje recordo esses dias nas Antas e do meu avô e do vinagre e do azeite, e de quando apanhava o meu avô pelas costas, e agitava freneticamente a garrafa para ver como o azeite e o vinagre se misturavam por um instante, só um instante; e depois ficava a ver as bolhas separar-se lentamente, enquanto ele fingia que não via e se ria.

Mas porque é que vos estou a contar isto? Ora, porque posso. Um destes dias conto-vos uma história da minha avó.

Jazz e música clássica
A história da tentativa de fundir o Jazz com a música clássica é realmente muito antiga. O problema, desde o início, era não tanto a utilização de temas clássicos, mas a conciliação dos dois universos, culturas: branca, ocidental, visual, escrita, com negra, afro-americana, oral. Vinagre com azeite (enfim!).
A história remonta aos primeiros orquestradores, Fletcher Henderson, mas principalmente Duke Ellington. Dizia Rex Harrison em 1955: «a maior parte da obra de Ellington é única como forma musical original, mas não é Jazz no sentido rigoroso» e «A tentativa feita por Ellington de fundir o Jazz num formato clássico tem, claro está, feito profunda impressão em muitos músicos e críticos “sérios”, que tiraram muitas conclusões falsas». E ainda Max Jones, citado pelo mesmo Harrison: «Com o andar dos anos orquestrou partes cada vez mais rigorosas de cada músico, tolhendo-lhe progressivamente a liberdade de variações individuais». E poderia continuar…
Harrison e Jones põem o dedo na ferida localizando o problema: Ellington escreveu partes substanciais das peças, composições e arranjos, «tolhendo-lhes a liberdade», substituindo improvisação total por notação escrita clássica. A originalidade de Duke residia na forma absolutamente genial como jogava com as estruturas e a improvisação, como utilizava as massas sonoras, manobrando a orquestra como um instrumento. Apesar das observações contrárias, a improvisação era de facto um dos elementos fundamentais da sua música e até mesmo os seus detractores reconheciam que ele tinha na orquestra sempre os melhores de entre os melhores. Mas a verdade também é que a «liberdade» total nunca tinha existido e as interpretações continham sempre um tema que mesmo que não fosse escrito, ele era passível de o ser e a improvisação obedecia a regras, mesmo se os músicos as transgrediam e elas evoluíam a todo o momento. Ellington apenas assumia as consequências finais dessa realidade.

Outros demónios...
Enfim, consumado o pecado original, outros demónios assomaram nos anos seguintes. Um dos exemplos mais controversos terá sido o pecadilho do insuspeito Charlie Parker no disco «with strings». Mas o projecto era menos ambicioso que a forma ellingtoniana. Basicamente ele constava de uma formação clássica, com música e músicos clássicos, por cima do que o saxofone de Bird brilhava. E apesar da beleza do disco, pouco da osmose corrosiva dos dois universos, escrito e oral, de Ellington; apenas duas formas concorrentes, uma sobre a outra.
A verdade é que esta foi a fórmula escolhida por inúmeros músicos, talvez para se oferecer autoridade; e isto chegou aos nossos dias. É frequente ver nos cartazes: «fulano» com orquestra. A orquestra (clássica, por norma) conta com um compositor, um arranjador e um director – todos eles competentes funcionários - e o solista lá está à frente esperando paulatinamente que chegue a sua vez. Infelizmente foi isso que vimos, por exemplo, há bem poucos anos acontecer com o grande Wayne Shorter, num concerto no Coliseu do Porto. Como se ele necessitasse disso... No melhor pano cai a nódoa...
Os anos 50 e o cool trouxeram Gil Evans e nunca a sofisticação formal atingiu um nível tão elevado. O provocador Evans não escondia que queria mesmo casar azeite e vinagre. Ele acrescentou novas combinações tímbricas, ele reformulou e elevou a arte de Ellington até ao céu. O visionário Miles Davis soube descobrir-lhe o génio onde outros clamavam raios e coriscos: um dos momentos altos da colaboração dos dois músicos é mesmo Concerto Aranjuez, em Sketches of Spain. Bob Brookmeyer e Maria Schneider são outros representantes desta fórmula jazz-clássica, combinando escrita e improvisação, servida por arranjos próprios, com erudição, elegância e engenho.
Uma ainda outra bem sucedida solução para esta espécie de problema de «quadratura do círculo» foi realizada por Max Roach nos anos 80 com o injustamente esquecido e sem descendência «duplo quarteto». Basicamente tratavam-se de dois quartetos – um clássico e um quarteto de Jazz – a funcionar de forma dinâmica. Existia uma estrutura escrita que era tocada pelo quarteto de cordas clássico, aqui e ali pontuada por exercícios de improvisação limitados, que o quarteto de Jazz (com Max Roach à bateria, mais contrabaixo, saxofone e trompete) ora intrometia, ora perseguia, ora secundava, ora acometia, ora questionava. O resultado final era brilhante e valeria a pena ser revisitado!

Uri Caine e Mozart
E enfim, exemplo contemporâneo será o de um Uri Caine num trabalho como «plays Mozart» (2006), por ex., ao utilizar a pauta integral das peças clássicas, com tudo o que elas contêm, de concepções, melódicas e harmónicas, também estruturais e culturais, para introduzir elementos de interrogação que as percorrem desde o princípio. Esses «elementos de interrogação» inevitavelmente acabam por transformar a peça em cada momento, permanecendo embora reconhecíveis. É Mozart em movimento, instável (e escandaloso, até por essa inamobilidade própria da clássica), sim, no tema, mas Jazz, definitivamente; não também pela linguagem, afirmarão mais conservadores, mas na forma como aborda o tema, seja ele qual for, introduzindo elementos microscópicos estranhos, alterações na melodia, subvertendo o ritmo, dissonâncias e brechas de todo o tipo sobre a linha da composição, jogando com os instrumentos, uns improvisando sobre a pauta que outros tocam. Movimento, música em movimento, e improvisação versus pauta. Instrumentos contrapondo a outros. O tema que se desloca do violino para o piano, do piano para o violino-clarinete ou para o trompete; ao mesmo tempo que os outros instrumentos constroem novas melodias, novos contrapontos, parecendo associar-se ou dissociar-se aleatoriamente. Puro Jazz.

e demónios portugueses
Um exemplo não conseguido de uma experiência semelhante foi o Ascent Trio de Bernardo Sassetti; um duplo trio em que ele era o vértice, mas em que os dois trios estavam quase sempre divorciados, numa fórmula do tipo «ora agora tocas tu, ora agora toco eu». Conhecendo o Bernardo Sassetti, seria de esperar melhor...
E aproveitando para falar de Portugal, vale a pena referir ainda dois exemplos bastante mais conseguidos, mesmo se não levados às últimas consequências. O primeiro será o aclamado projecto de Mário Laginha, Canções e Fugas, que a crítica nacional votou como o melhor disco de Jazz nacional de 2006. Nele Laginha cruza técnicas próprias da fuga bachiana com improvisação jazzística num exercício bastante conseguido.
Um segundo exemplo não editado foi realizado por Pedro Moreira, o "Jazz Allegro Dansabile", quinteto mais quarteto de cordas, apresentado no CCB em 2006. O projecto revelava um muito interessante trabalho de composição e arranjo que tinha ademais o atractivo de ser acompanhado de uma igualmente interessante coreografia. De forma diferente os dois projectos partilham de concepções que se aproximam de Uri Caine, ainda que, como disse, não levados às últimas consequências.

2007